Amin Dib Taxi & Papaléo Advocacia

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terça-feira, 17 de agosto de 2010

CAPRA E O PONTO DE MUTAÇÃO DA CIÊNCIA MODERNA

(Texto Parte de um artigo de autoria nossa publicado nos anais do XIX CONPEDI - A Afirmação de novos paradigmas na ciência jurídica a partir de uma visão sistêmica)


Em “O ponto de mutação” (mais especificamente no capítulo I, intitulado Crise e Transformação), Fritjof Capra tenta, preliminarmente, inserir o leitor no contexto da crise mundial a qual a sociedade passa naquele momento (1983); com a corrida armamentista (nuclear), e suas conseqüências[1]; com a utilização da energia nuclear no setor industrial; a super poluição e a contribuição que a tecnologia industrial tem dado para o crescente “risco” ecológico e à saúde; a questão das “doenças da civilização[2]”; por fim a questão da crise econômica representada (à época), pela figura da inflação galopante, desemprego maciço e distribuição desigualitária de renda; e o eminente esgotamento dos recursos naturais.

Estabelecida idéia de crise Capra passa a demonstrar como tais problemas são intimamente ligados uns com os outros e demonstra como a concepção reducionista do conhecimento (criada por Descartes), gera uma total falta de respostas para os problemas apresentados na sociedade moderna. Fica clara essa crítica quando aponta que a verdadeira crise é a de idéias na qual as ciências especificas não tem respostas, considerando que passam “a subscrever percepções estreitas da realidade, as quais são inadequadas para resolver os problemas de nosso tempo[3]”.

Portanto, a inicialização do trabalho em “O ponto de mutação” reside na tentativa de inserção do leitor no contexto dessa crise de idéias, conseqüência da falta de soluções para os problemas da sociedade moderna em decorrência da percepção estreita da realidade pelos cientistas de nosso tempo, fato este que comprova que todos os problemas estão intimamente ligados de forma sistêmica e uma análise especifica somente geraria soluções específicas, sem, contudo, solucionar a grande falha estrutural na produção científica.

Estabelecida a idéia de crise, recorre Capra à filosofia chinesa que conceitua “crise” com o termo wei-ji. Composto pelos caracteres “perigo” e “oportunidade”, ficando viva a imagem de que apesar dos crescentes perigos os quais a sociedade passava (e vem passando), o ser humano tem a oportunidade de encontrar-se na adversidade, de “encontrar seu caminho”. Logo, o recurso a essa abstração nos leva a crer que não é por acaso intitular-se a obra de “O ponto de mutação”.

Utilizando-se dos ensinamentos de Toynbee, Capra ainda revela que existe um padrão de nos estudos de queda e ascensão das civilizações no qual “a gênese de uma civilização consiste na transição de uma condição estática para a atividade dinâmica[4]”, e que este padrão básico nada mais é do que um padrão de interação denominado de “desafio-e-resposta”. Esta idéia fica comprovada quando ele afirma que “a civilização continua a crescer quando sua resposta bem sucedida ao desafio inicial gera um ímpeto cultural que leva a sociedade para além de um estado de equilíbrio, que então se rompe e apresenta um novo desafio[5]”. Daí a dinamicidade da atividade das civilizações.

O que tem ocorrido conosco é que a falta de dinamicidade, ao longo dos anos, acabou por gerar esta crise que se fundamenta (segundo Capra) em três facetas: 1) a supremacia do patriarcado; 2) a utilização de combustíveis fósseis; e 3) os valores sociais apresentados em forma de paradigma; existindo a crescente necessidade de que superemos tais “problemas”.

A apresentação da crise, vista pelo viés da sociedade patriarcal (que é um dos paradigmas mais antigos da humanidade) e considerando que pouco se sabe acerca das sociedades pré-patriarcais, é um ponto de vista válido como alicerce dos outros dois. Explica-nos Capra que a filosofia Taoísta vem sendo interpretada de modo a conceber o yin como sendo o lado “feminino” de todas as coisas, enquanto que yang seria o lado masculino.

Na verdade, ao descrever o sistema yin-yang, nunca quis o Tao operar divisão entre opostos, tanto que nunca aparecem separados, mas quer sim que os opostos se harmonizem procurando o constante equilíbrio. Então, Capra se utiliza de tal conceito no intuito de demonstrar que a ciência e o pensamento da sociedade eram (ou ainda são) preponderantemente, masculinas, expansivas, exigentes agressivas, competitivas, racionais (o cerne do conhecimento científico), analíticas, etc. Por isso é que deve-se proceder ao resgate do lado feminino, contrátil, conservador, receptivo, cooperativo, indutivo (o lado perdido da ciência), sintético, etc. a fim de estabelecer-se um equilíbrio entre todos os opostos.

E a crítica não termina aí. Relembra-nos Capra que as quando Descartes separou corpo e alma, procedeu-se, na verdade, a criação de uma concepção mecânica do ser humano e do universo. No filme “Mindwalk”, baseado no livro em estudo, utiliza-se uma metáfora para descrever a visão mecanicista do ser humano. Considerando o homem como se fosse um relógio, se perfeito, funcionaria perfeitamente, entretanto, se tivesse uma pequena peça avariada a mesma deveria ser estudada minuciosamente (separada do todo), para que o problema pudesse ser resolvido. Daí decorre a divisão do estudo do objeto em áreas específicas.

Francis Bacon é citado na obra por também contribuir com as idéias de Renné Descartes. Bacon foi o autor do método da experimentação no qual preceituava que o conhecimento advém das comprovações experimentais, logo considerava que o homem deveria “torturar a natureza” para obter todas as respostas possíveis para suas perguntas. Por ter vivido em meados do Séc. XVI, Bacon foi fortemente influenciado pela perseguição católica mais conhecida como “caça as bruxas”, por isso acredita-se que favoreceu ao paradigma patriarcal quando utilizou de figuras como “mãe natureza”, para descrever o natural e a necessidade de torturá-la para se obter respostas. Pensando na natureza como selvagem e perigosa, tentou o homem, a todo custo, dominá-la e como a idéia do patriarcado estava fortemente ligada a este movimento, coincidiu com exploração do sexo feminino.

Em verdade, a obra de Fritjof Capra representa um marco para ciência moderna, não pelo cunho filosófico ou teórico de sua argumentação, mas sim por ser uma crítica à sociedade científica que se apresenta estática em relação ao dinamismo universal das relações sistêmicas. O caminho das ciências, depois de Capra, tende a permanecer utilizando o reducionismo de Descartes, entretanto, cada vez mais e mais passamos a buscar a complementaridade entre as relações científicas, e é justamente neste viés que “O Ponto de Mutação” torna-se de imprescindível relevância.



[1] [1] Como conseqüências cita o autor a disparidade entre os incentivos nucleares (que giravam em torno de 1 bilhão) e os outros ramos que necessitam de maior atenção (como alimentação, seguridade social e prestação de serviços básicos). CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação – a ciência a sociedade e a cultura emergente. Editora Cultrix. Pág. 19.

[2] [2] A este respeito citamos in verbis: “Enquanto as doenças nutricionais e infecciosas são as maiores responsáveis pela morte no Terceiro Mundo, os países industrializados são flagelados pelas doenças crônicas e degenerativas, apropriadamente chamadas "doenças da civilização", sobretudo as enfermidades cardíacas, o câncer e o derrame. Quanto ao aspecto psicológico a depressão grave, a esquizofrenia e outros distúrbios de comportamento parecem brotar de uma deterioração paralela de nosso meio ambiente social”. CAPRA, Fritjof. Op cit. Pág. 22.

[3] [3] CAPRA, Fritjof. Op Cit. Pág. 23.

[4] [4] Idem. Ibidem. Pág. 24.

[5] [5] Idem. Ibidem. Pág. 25.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

LEVANDO OS DIREITOS A SÉRIO


A discussão introdutória no sétimo capítulo da obra “Levando os Direitos a Sério”, trata preliminarmente acerca da relação entre o debate político nos Estados Unidos e a linguagem dos direitos. Segundo o jurista americano “a linguagem dos direitos atualmente domina o debate político nos Estados Unidos” (DWORKIN, 2002), fato que o leva a crer existirem alguns direitos morais que o cidadão possui contra o seu Governo[1].

Ressalta ainda que esta noção de direitos morais contra o Estado somente tem uma razão de existir quando uma sociedade política encontra-se divida, não havendo mais possibilidade de apelo aos objetivos comuns ou à cooperação. Nota-se evidente que, apesar de tratar de uma realidade jurídica norte-americana, não é um discurso muito distante da experiência jurídica brasileira que possuí uma sociedade política fragmentada, na qual a cooperação ou os objetivos comuns não passam de meros argumentos suscitados apenas quando conveniente ao Poder Público; além de existir latente uma polissemia[2] no sistema formalista-normativista que tem causado um inchaço de leis e princípios, além de algumas contradições existentes dentro do próprio sistema.

O fato é que Dworkin nos chama atenção para a realidade de que o ordenamento jurídico sozinho não é capaz de exaurir a matéria de direitos morais do cidadão, apesar de reconhecer os argumentos de corrente doutrinária que procede a movimento contrario quando afirmam que a ordem jurídica reconhece direitos e liberdades individuais como liberdade de expressão, igualdade e processo regular. Logo deve o cidadão respeitar o sistema visto que aqueles que são totalitários são quem não merecem respeito.

Contudo, é necessário pontuar que a discussão central que pretende o jurista não é de afirmação ou negação da existência desses direitos morais contra o Estado, porque existe um consenso de que eles existem, mas sim “explorar as implicações desta tese para aqueles, inclusive o atual governo dos Estados Unidos, que afirmam aceitá-la” (DWORKIN, 2002), portanto, uma crítica à utilização desse conceito de direito moral do cidadão contra o Estado na pragmática política de seu país.

No modelo consuetudinário, de direito costumeiro, utilizado pelos juristas norte-americanos, cabe ao juiz uma participação mais extensa na questão política da sociedade em razão dos precedentes jurídicos que sua decisão acaba por gerar. Nesse sentido Dworkin assevera que “Na prática o governo terá a última palavra sobre quais são os direitos individuais, porque sua polícia fará o que suas autoridades e seus tribunais ordenarem” (DWORKIN, 2002). Todavia, será que o Estado age sempre corretamente?

Neste mesmo sentido é a memória das ditaduras baseadas na lei, no positivismo jurídico, que são as decorrentes do nazismo na Alemanha e do fascismo na Itália[3]. A certeza do cumprimento da lei nestes regimes acabou por gerar graves violações aos direitos humanos, por conseguinte dando, tanto aos perseguidos como aos cidadãos não perseguidos, direitos morais contra o Estado para cobrar uma obrigação positiva ou negativa.

Começa a ficar clara a intenção de Dworkin ao abordar tal temática que acaba por trazer-nos para essa nova complexidade da ciência jurídica, na qual a discussão dos direitos morais contra o Estado perpassa pela noção de Direitos Humanos e Responsabilidade Política do Estado e de seus cidadãos.

Vale ainda ressaltar que por vezes a questão constitucional acaba por obscurecer o debate pretendido pelo autor. Como um movimento nascido no século XVIII com a finalidade de diminuir os poderes do Estado, o constitucionalismo escrito, juntamente com o paradigma do positivismo científico, é o que vem dar respostas aos problemas práticos na relação (de poder) cidadão x estado. Ocorre que:

“A Constituição funde questões jurídicas e morais, fazendo com que a validade de uma lei dependa da resposta a problemas morais complexos, como o problema de saber se uma determinada lei respeita a igualdade inerente a todos os homens. Esta fusão tem conseqüências importantes para os debates sobre a desobediência civil (...). Mas isso deixa em aberto duas questões importantes. Não nos esclarece se a Constituição, mesmo corretamente interpretada, reconhece todos os direitos morais que os cidadãos têm, e não nos diz se, como muitos supõem, os cidadãos têm o dever de obedecer à lei mesmo quando esta infringe seus direitos morais” (DWORKIN, 2002).

De fato, mesmo que a constituição fosse perfeita, ainda caberia ao Judiciário a aplicação da iuris dicto, ou seja, o Juiz ainda teria a última palavra sobre esses direitos consagrados constitucionalmente. O grande problema destacado por Dworkin é que “nenhuma decisão jurídica é necessariamente a decisão correta” (DWORKIN, 2002), justamente pelo fato de que justiça e verdade tratam de valores que dependem de uma construção dialética e democrática.

Desse modo, torna-se imperioso admitir o avanço na proteção dos direitos morais contra o Estado que se conseguiu através das constituições, mas, pondere-se que ainda estamos muito longe de garantir tais direitos e, ainda, dizer com certeza quais são eles, restando nas mãos do Estado, por vez ou outra, decidir quais desses direitos serão garantidos na prática.

O debate pode até parecer convergir ao relativismo e acabar se perdendo dentro de si mesmo, não fosse a retórica anglo-saxônica, brilhantemente utilizada de construção e desconstrução do pensamento para chegar ás possíveis respostas. Nesse sentido, Dworkin reitera que:

“Se não podemos exigir que o governo chegue a respostas corretas sobre os direitos de seus cidadãos, podemos ao menos exigir que o tente. Podemos exigir que leve os direitos a sério, que siga uma teoria coerente sobre a natureza desses direitos, e aja de maneira consistente com suas próprias convicções.” (DWORKIN, 2002)

No prosseguimento da obra começaremos a analisar, pormenorizadamente, a questão dos direitos e o direito de infringir a lei. A pergunta que inicia o debate é se existe alguma circunstância na qual o cidadão é autorizado, baseado em direito moral, a violar uma lei. Neste diapasão, Dworkin aponta para duas correntes que sustentam argumentos contrários, porem quando aplicados em alguns casos práticos ambas apresentam a mesma resposta á questão principiológica que os divide.

Àqueles que “parecem desaprovar qualquer ato de desobediência”, Dworkin denomina de conservadores, para eles as desobediências devem ser processadas e julgadas, ficando decepcionados quando as condenações são absolvidas. Por outro lado, àqueles que são “muito mais flexíveis com certos casos de desobediência”, Dworkin chama de liberais, os quais defendem que em alguns casos o processo é desnecessário e acabam por celebrar as absolvições (DWORKIN, 2002).

Contudo, importante retomar à questão suscitada de que ambos ofertam respostas de mesmo fundamento principiológico e em aplicações práticas acabam contradizendo seu próprio discurso. A construção comum do argumento começa com a afirmação de que “em uma democracia (...), todo cidadão tem um dever moral geral de obedecer a todas as leis, mesmo que ele queira que algumas delas sejam modificadas” (DWORKIN, 2002). Portanto, devemos um direito de tolerância ás diferenças existentes na democracia. Entretanto, esse dever geral não pode ser tomado como absoluto, uma vez que uma sociedade justa pode vir a produzir políticas injustas.

Por conseguinte, as correntes parecem convergir no entendimento de que existe a possibilidade de o ordenamento jurídico positivo[4] entrar em conflito com os valores morais do cidadão. Quando isto acontece, cabe a este último optar por qual conduta deve tomar, desde que reconheça que, mesmo agindo em conformidade com sua moral pessoal, deve o mesmo submeter-se ao julgamento e à punição que o Estado impõe em caso de descumprimento da lei.

Essa é a noção geral dos argumentos utilizados pelas duas correntes. Como se pode observar a construção desses argumento pode convergir para os dois lados e, é claro, existem aqueles que possuem opiniões extremadas, mas Dworkin é detalhista ao afirmar que a construção que faz representa a maior parte dos atuantes das duas linhas.

Na prática o que ocorre é que os que se dizem conservadores acabam se contradizendo quando sustentam a punição aqueles que escapam do recrutamento militar por razões de consciência, ou, encorajam outros para que o façam, mesmo reconhecendo que o agente da conduta age de forma honesta. A contradição fica mais visível quando se obtempera que o Estado assegura a liberdade de expressão a todos os cidadãos, logo como pode querer punir alguém que exerce direito garantido pelo próprio Estado?

No Brasil, este caso em particular já se encontra superado na dicção do art. 5º, VIII da Constituição Federal[5], entretanto, há que se retomar a questão da polissemia do sistema jurídico positivo que encontra diversas contradições em si próprio ao se especializar[6].

Não é muito diferente o que acontece na prática com a corrente dos liberais que, apesar de reconhecerem que aqueles funcionários das escolas públicas que atrasam o processo de dessegregação agem, acreditando no seu intimo mais profundo, com certeza de estarem praticando um ato correto, devem ser punidos por desobedecerem a lei de dessegregação.

Segundo Dworkin tal contradição ocorre por dois motivos. Ou existe uma enorme hipocrisia entre aqueles que sustentam tais posições aparentemente contraditórias, ou, “a explicação mais profunda encontra-se em uma série de confusões que freqüentemente embaralham os argumentos sobre os direitos” (DWORKIN, 2002).

A primeira confusão que destaca o jurista diz respeito à força que tem a palavra direito (right), em diferentes contextos de utilização. Usualmente, quando se diz que uma pessoa tem o direito de fazer algo, fica nas entrelinhas, que seria errado interferimos na realização da ação, ou que, se podemos interferir naquela conduta correta, somente o podemos em situações especiais.

Para Dworkin, este é o sentido forte da palavra direito (right), asseverando ainda que “há uma clara diferença entre dizer que uma pessoa tem o direito de fazer algo neste sentido e dizer que isto é que é a coisa ‘certa’ a ser feita, ou que ela nada faz de ‘errado’ ao agir dessa maneira” (DWORKIN, 2002), que destaca a nítida diferença entre o lícito/ilícito e o moral/imoral.

Existem situações em que podemos agir conforme a lei e mesmo assim proceder de forma “errada”, assim como atos contra legem podem ser vistos, muitas vezes, como “corretos”. Tudo depende do referencial. Neste sentido José Eduardo Faria denota que, no Brasil, o formalismo e o apego a certos rituais burocráticos prejudicam a efetivação dos direitos sociais pelo Judiciário. Tal prejuízo foi notado, primeiramente, pelos juízes de primeira instância, posto que atuam em posição mais próxima à sociedade (mais perto da realidade social), fazendo-os, por vezes, agir corretamente, contra a lei.

Para melhor explicar tal definição de direito no sentido “forte” Dworkin assim discorre sobre o assunto:

“Se nosso exército captura um soldado inimigo, poderíamos dizer que o certo para ele é tentar fugir, mas isso não quer dizer que estaríamos errados se tentássemos impedir-lhe a fuga. Podemos admirá-lo por tentar escapar e, talvez, até menosprezá-lo se não agir assim, Mas não se sugere aqui que tentar barrar-lhe o caminho é errado. Pelo contrário, se pensamos que a nossa causa é justa, consideramos que é certo fazermos tudo o que estiver ao nosso alcance para detê-lo.” (DWORKIN, 2002).

Por isso é que se diz que o soldado capturado tem o direito de, pelo menos, tentar fugir, porque pensamos que, ao fazê-lo, o soldado não age de modo “errado”. A situação fica mais delicada quando se analisa sob o prisma do criminoso. Poderia, desse modo, ser direito do ladrão que roube o que bem entender desde que cumpra sua pena? Para Ronald Dworkin, a resposta é negativa. Segundo ele “dizemos que um homem só tem o direito de violar a lei, muito embora o Estado tenha o direito de puni-lo, quando pensamos que, em razão de suas convicções, ele não erra ao agir assim” (DWORKIN, 2002).

Desse modo, podemos perceber que conservadores e liberais concordam que em algumas situações o cidadão não age errado ao violar a lei, quando sua consciência o autoriza. O que eles divergem é acerca do modo pelo qual o Estado deve agir perante esta violação. A grande questão é que se optarmos por processá-lo, então, o entendimento seria o de que ele não agiu de forma correta. O que gera um paradoxo entre as afirmações.

Contudo, importante atentar que, a partir deste momento, fica justificada, pelo menos teoricamente, que é possível sim que o cidadão tenha direitos morais contra o Estado que dão ensejo, em determinadas situações, a uma atuação contraria a lei. Logo torna-se imperioso fazer alguns questionamentos como: porque o cidadão deve agir contra a lei? Quais os fundamentos de sua decisão? E, qual deveria ser a reação do Estado?

Bem, a constituição estadunidense reconhece a existência de direitos fundamentais para seus cidadãos, e se o faz, acaba por afirmar que tais direitos são direitos no sentido “forte”, justamente, porque seria errado, por parte do Estado, impedir o cidadão ao livre exercício desses direitos fundamentais. Por isso que “um governo responsável deve estar pronto para justificar o que quer que faça, particularmente quando isso restringe a liberdade de seus cidadãos” (DWORKIN, 2002). O que acontece, na maioria dos casos, é o emprego da utilidade geral[7] como justificativa dos atos do Estado.

Sem sombra de dúvida, como afirmado anteriormente, a relação entre direito x moral adotou a vertente kantiana para a resolução do impasse filosófico entre jusnaturalismo e juspositivismo. Assim, a distância entre o que é moral e o que é legal justifica a existência de situações morais, porém, ilegais; ou, legais, porém imorais. O fato é que nem todos os direitos juridicamente positivados representam direitos morais contra o Estado. Por conseguinte, que este último possa editar lei e justificar suas ações em prol da utilidade comum, ou do bem geral, na mesma medida em que o cidadão pode agir contra essa lei desde que baseado em direito (no sentido forte) moral.

Todavia, Dworkin ressalta que “a perspectiva de ganhos utilitaristas não pode justificar que se impeça um homem de fazer o que tem direito de fazer” (DWORKIN, 2002), pois considera que os ganhos que resultam do respeito às leis são ganhos de cunho meramente utilitaristas, desse modo, preceitua que o benefício geral não deve ser um bom argumento para restringir os direitos.

Outra justificativa passa, ainda, pela noção de direitos concorrentes. Nesta esteira o jurista americano preceitua que:

“Afirmei que um Estado pode ter justificativas para desconsiderar ou limitar os direitos com base em outros fundamentos. Devemos, pois, nos perguntar, antes de rejeitar a posição conservadora, se alguns desses fundamentos se aplica. Dentre esses outros fundamentos, o mais importante – e menos bem compreendido – é o que invoca a noção de direitos concorrentes que seria ameaçados caso o direito em questão não fosse limitado.” (DWORKIN, 2002).

Tal conceito trata, primordialmente, acerca do debate conhecido no Brasil como conflito entre princípios. Como já exaustivamente abordado, o sistema de direito americano é baseado no sistema Inglês, consuetudinário, portanto trabalhando com apenas um núcleo de direitos fundamentais positivados em sua Constituição. Portanto, a aplicação do direito se dá através de uma percepção axiológica do problema, no caso, através dos princípios, tratados por Dworkin como direitos concorrentes.

No Brasil, a Constituição de 1988 trouxe este cunho axiológico através dos vários princípios que estabelece em seu corpo. Sobre a definição desses princípios é Humberto Ávila quem melhor discorre quando sentencia que:

“A definição de princípios jurídicos e sua distinção relativamente às regras depende do critério em função do qual a distinção é estabelecida. Ao contrário dos objetos materiais (coisas), cujo consenso em torno de sua denominação é mais fácil pela referência que fazem a objetos sensorialmente perceptíveis, as categorias jurídicas, entre as quais se inserem os princípios, são instrumentos analíticos abstratos (linguisticamente formulados). Por isso mesmo é mais difícil haver uma só definição de princípio, já que a sua distinção relativamente às regras depende muito intensamente do critério distintivo empregado (se quanto à formulação, ao conteúdo, à estrutura lógica, à posição no ordenamento jurídico, à função na interpretação e aplicação do Direito, etc.), do fundamento teórico utilizado (se positivista, jusnaturalista, normativista, realista, etc.) e da finalidade para a qual é feita (se descritiva, aplicativa, etc.). Daí a afirmação de GUASTINI, segundo a qual não se deveria sequer buscar uma definição unitária dos princípios jurídicos, mas apenas aceitar, primeiro, que alguns autores o utilizam com um significado e outros com outro e, segundo, que o termo princípio pode referir-se a vários fenômenos, e não somente a um só. Isso explica porque há tanta divergência quanto ao significado dos princípios. Chega-se mesmo a afirmar que haveria quase tantas definições de princípios quantos são os autores que sobre eles escrevem.” (ÁVILA, 2001).

Desse modo, a concorrência principiológica, deve ser levada em conta pelo Estado quando o mesmo pretende limitar os direitos dos cidadãos. Ocorre que, como bem ressalta Dworkin, este argumento é confuso uma vez que depende de “uma outra ambigüidade da linguagem dos direitos” (DWORKIN, 2002).

Outra forma pela qual o Estado pode justificar sua atuação no sentido de restrição ou limitação dos direitos do cidadão é quando existir uma situação de emergência. Ressalta, porém, que essa emergência deve ser genuína, ou seja, o perigo deve ser claro e iminente. Entretanto, Dworkin, novamente, desconstrói a tese da emergência afirmando que “o argumento da emergência também se revela confuso sob outro ponto de vista. Ele pressupõe que o governo deve assumir ou a posição de que um homem nunca tem o direito de violar a lei, ou a de que sempre tem esse direito” (DWORKIN, 2002).

Importante notar que o jurista informa que todos os conceitos utilizados até o presente momento, partem da noção “forte” de direitos, acreditando que fica, no mínimo, reforçada a idéia de que os cidadãos têm alguns direitos morais contra o Estado que os habilitam a agir, em algumas situações contra a lei. Porém, Dworkin pondera que tal atuação deve se dar como a última ratio, uma vez que o cidadão tem que andar uma linha muito tênue entre os direitos que de boa-fé acredita que tenha e os direitos de seus concidadãos.

A partir deste momento, o jurista norte-americano, começa a distanciar o debate da teoria e aproximá-lo mais à prática. Devido ao fato de o Estado garantir certos direitos (no sentido forte) morais do cidadão em face aos arbítrios que possam lhe acometer, acaba estabelecendo aos cidadãos, direitos contra o Estado. Contudo, esses direitos incontroversos assegurados pelo Poder Público, não são o objeto a ser estudado, considerando são a regra em sua primazia de aplicação pela política governamental.

O que se discute são os direitos controversos (uma vez que existe uma controvérsia entre os direitos paradigmáticos), aqueles cujo o livre exercício é redimensionado pelo Estado em determinadas situações. E a mais célebre, lembrada por Dworkin, trata do Processo contra os Sete de Chicago, na década de 60, assim discorrida pelo autor:

“Os réus eram acusados de conspirar para cruzar fronteiras estaduais com a intenção de provocar distúrbios públicos. Esta acusação é vaga – talvez até inconstitucionalmente vaga -, mas aparentemente a lei define como crime os discursos emocionais que defendem que a violência é justificada quando tem por objetivo garantir a igualdade política. O direito à liberdade de expressão protege esse tipo de discurso? Esta é, sem dúvida, uma questão jurídica, porque invoca a cláusula de liberdade de expressão da Primeira Emenda da Constituição. Más é também uma questão moral, porque, como afirmai devemos tratar a Primeira Emenda como uma tentativa de proteger um direito moral. Faz parte da tarefa do governo ‘definir’ direitos morais através de leis e decisões judiciais, ou seja, declarar de forma oficial em que medida a lei incorporará os direitos morais. O Congresso viu-se diante dessa tarefa ao votar a lei contra os distúrbios públicos e a Suprema Corte a enfrentou em incontáveis casos.” (DWORKIN, 2002).

Desse modo, a reafirmação dos direitos morais deve ser papel do Estado, através de seus órgãos e esferas de atuação. Ocorre que, como bem lembra o autor no início do texto, em uma sociedade em princípio justa, todas as decisões do Estado não são sempre corretas, afina de contas qual a certeza da verdade? Logo, como deve o Poder Público decidir quanto à definição desses direitos?

O primeiro passo para agir em uma esfera de atuação, no mínimo prudente, é reconhecer que qualquer das decisões que possam proferir, existe a possibilidade de estarem enganados, desta feita devem tentar limitar seus erros (descobrir onde reside o perigo de enganar-se). Tendo este foco determinado, Dworkin propõe dois modelos para que a atuação do Estado se dê conforme o que se espera quando se discute acerca da controvérsia dos direitos paradigmáticos.

O primeiro deles é que o Estado deve tentar agir com equilíbrio entre os direitos do indivíduo e as exigências da sociedade como um todo. Se o Estado agir embaraçando a um direito moral do cidadão pecará contra o indivíduo, de outra forma, se acabar inflando um direito poderá privar a sociedade de algum benefício geral. Logo, equivocar-se quanto uma das alternativas é incorrer em erro, qualquer seja o lado que se escolha. Desta feita, deve o Estado agir na linha margina entre as duas ações.

Existem alguns passos que o Estado deve seguir quando define direitos a partir deste modelo. Primeiramente, deve tomar em conta “o custo social de diferentes propostas e fazer os ajustes necessários” (DWORKIN, 2002); sabendo que não deve conferir, por exemplo, o mesmo direito de manifestação para um bando raivoso e um bando pacífico.

Posteriormente, uma vez tendo decidido acerca da definição e da medida desses direitos, deve o Estado aplicar essa decisão integralmente, para poder: “permitir que o indivíduo aja dentro dos limites de seus direitos, do modo como os definiu o governo, mas que não os extrapole, de maneira que se uma pessoa possa infringir a lei, mesmo por razões de consciência, deve ser punida” (DWORKIN, 2002).

Todavia, apesar da enorme aceitabilidade que tal conceito possa gerar perante os leitores, Dworkin expressa que tal modelo é inaplicável. O equilíbrio trata de uma metáfora, portanto de um modelo falso. Devido a complexidade do direito moderno a tarefa governamental tem se tornado cada vez mais difícil e cara, exigindo uma postura séria do Estado quando a conduta que adote na proteção desses direitos morais. Portanto, a metáfora do equilíbrio poderia gerar um descompasso com a proteção ao conceito primário de dignidade da pessoa humana, visto que poderia ser o fruto de maneiras de tratar o ser humano, incompatíveis com o seu reconhecimento como um membro da comunidade humana. Sendo este tratamento imensamente injusto.

O segundo modelo proposto por Dworkin trata da questão da igualdade política. Para chegar-se a tal conceito é necessária a pressuposição de que “os membros mais frágeis da comunidade política têm direito à mesma consideração e ao mesmo respeito que o governo concede a seus membros mais poderosos” (DWORKIN, 2002). Todavia, em tal modelo a restrição de direitos e considerada como algo gravíssimo.

A filiação teórica desse segunda corrente aparenta aproximar-se mais daqueles que, no início do trabalho, foram denominados de conservadores, justamente porque acreditam que a proibição e limitação de direitos deve assentar-se sobre as mesmas razões convincentes que reconhecem os direitos em casos incontroversos.

Por fim, em conclusão adverte Dworkin que:

“o governo pode discriminar e impedir que alguém exerça seu direito de falar quando houver um risco claro e concreto de que seu discurso irá causar um grande dano à pessoa ou à propriedade alheia (...). Mas devemos recusar o princípio proposto, segundo o qual o governo pode simplesmente ignorar os direitos à liberdade de expressão quando a vida e a propriedade estiverem em questão. Enquanto o impacto do discurso sobre esses outros direitos permanecem especulativos e marginais, o governo deve procurar em outra parte o ponto de apoio para suas ações”. (DWORKIN, 2002).

Em suma, os objetivos principais a que se presta o trabalho denotam que o Governo deve desprender-se da noção absoluta de que os cidadãos nunca tem o direito de agir contra a lei e não deve definir os direitos dos cidadãos, de um modo que eles venham a se anular ou se contradizer[8], baseados em uma falsa premissa de bem-estar social. Relembra-nos Dworkin, ainda, que:

“a índole norte-americana (...) está em não levar nenhuma doutrina abstrata ao seu extremo lógico. Talvez seja a hora de ignorar essas abstrações e nos concentrarmos (...), na tarefa de oferecer à maioria de nossos cidadãos uma nova compreensão de em que consiste o interesse de seu governo por seu bem-estar e do direito que eles têm de governar”. (DWORKIN, 2002)

Então, por que devemos levar os direitos a sério?

“A parte principal do direito – a parte que define e executa as políticas sociais, econômicas e externas – não pode ser neutra. Deve afirmar, em sua maio parte, o ponto de vista da maioria sobre a natureza do bem comum. Portanto a instituição dos direitos é crucial, pois representa a promessa da maioria às minorias de que sua dignidade e igualdade serão respeitadas. (...) Se o governo não levar os direitos a sério é evidente que também não levará a lei a sério”. (DWORKIN, 2002).



[1] Ressalte-se que a expressão “Governo” utilizada por Dworkin compreende a concepção que, no Brasil, denominamos de Estado, ou seja, ao conjunto dos três Poderes ou Funções (Legislativo, Executivo e Judiciário). Importante salientar, também, a nota do tradutor Nelson Boeira que assevera “Dowrkin deseja sublinhar que se trata de direitos contra aquelas instâncias do Estado que fazem, interpretam e executam a lei”.

[2] Entenda-se por polissemia a lição de Eduardo Faria, que a entende como sendo “uma ordem repleta de conceitos tópicos, indeterminados e programáticos, destinados a dar a sujeitos de direito desigualmente situados, em termos sócio-econômicos e geo-ocupacionais, a (falsa) idéia de um ‘acabamento’ lógico, harmonioso, uniforme e unívoco de um sistema legal formalmente concebido como sendo capaz de traduzir ‘interesses comuns’ a partir de uma ‘vontade geral’” (FARIA, 1998).

[3] Nesta linha de pensar a Prof.ª Flávia Piovesan discorre que “sob o prisma histórico, a primazia do valor da dignidade humana é resposta à profunda crise sofrida pelo positivismo jurídico, associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha” (PIOVESAN, 2009), pontuando a dignidade da pessoa humana como uma espécie de direito moral do cidadão contra o Estado que causou a queda desses sistemas autoritários baseados da aplicação estrita da lei.

[4] Nesse sentido tomado como vontade do Estado.

[5] Art. 5º, VIII – “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (Fonte: www.planalto.gov.br).

[6] A Lei n. 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, pode ser tomada como um exemplo da polissemia de nosso ordenamento jurídico. Apesar de encontrar enorme arcabouço prático, tendo reduzido drasticamente o índice de violência doméstica contra a mulher, a lei em questão fere o princípio da igualdade material uma vez que sua proteção não alcança ás crianças e ao marido vítima de violência doméstica.

[7] Ou seja, um ato calculado de modo que produza mais benefícios do que danos.

[8] Questão da polissemia do ordenamento jurídico, tratada em linhas anteriores no presente trabalho.